21.8.11

Frases obscenas, injúrias e vizinhas cuscas. A triste história de amor que acabou em tribunal


?A culpa foi dela, ela põe-me fora de mim.?

Ao fundo da Rua dos Fanqueiros, plena baixa lisboeta, uma conspiração de vizinhas quadrilheiras amontoa-se à volta do prédio decrépito. Uns vêm cá fora espreitar só para ver se ninguém morreu e recolhem aos seus lares, enrolados nos seus roupões. Outros - ou melhor, outras - estão tão embrenhadas na tarefa de descobrir os segredos dos lençóis alheios que esticam as orelhas, e ainda mais as línguas. São três da madrugada mas nenhuma se retira sem conhecer na íntegra os pormenores da revolução que varreu o 3.º andar direito.

Na verdade, estão estas vizinhas fartas de saber. A Amélia, a Judite, a Esmeralda não vão à sala de audiências, mas está na cara que foi uma delas quem chamou a polícia. E quem não chamou fez questão de dotar os agentes de informações úteis: coisas da cama alheia e intrigas comoventes.

Conta o agente Maximiliano ter sido chamado ao local por excesso de ruído naquele andar tarde e a más horas. Conta também que quando a denunciante ligou para a esquadra foi instada a ir ela própria bater à porta do vizinho, denunciar o incómodo. Mas ela nem pensar, "eu cá não me meto lá dentro, ainda acabo feita em postas". Até porque, diz-se, era o pão nosso de cada noite. Berros para aqui, empurrões para acolá, choro, gritaria. Bum. Tanto que o prédio, ansioso por obras, todo ele tremia. E dessa vez parece que o episódio azedou à séria.

Quando o agente Maximiano e o colega de serviço bateram à porta do 3.º direito tiveram logo uma recepção à bruta: injúrias, ultrajes, insolências, empurrões. É por isso que o Zé, o inquilino do 3.º andar, está a responder em tribunal pelos crimes de injúria agravada, resistência e coacção sobre funcionário, e não por ter violado a lei do ruído ou por violência doméstica.

O pior era lá dentro, no apartamento desarrumado. "O cenário era pavoroso, assustador. Parecia coisa de filme", conta o agente à juíza. As paredes estavam riscadas, as portas eram enormes blocos de notas, o frigorífico estava cheio de post-it. Por todo o lado frases lascivas, obscenidades. "Dizia coisas como ''sou uma porca'', ou ''uma galdéria'' ou ''a minha mãe fez--me rameira''" [tudo formas ligeiras que o agente encontrou para ocultar palavrões como "puta", apesar de a juíza ter pedido para se deixar de pruridos, que não havia ali criancinhas].

O Zé, homem na casa dos 40, vive agora com esta mulher, de 25. Alta e magra, pés e pescoço de bailarina, diz--se que é de um homem ficar vidrado no movimento ondulante das suas pernas e no sacudir dos seus ombros. E consta que, quando trocou a ex-mulher por ela, Zé se transformou numa espécie de adolescente, sempre todo assarapantado. "Que paixões assolapadas", mordiam as vizinhas, que certamente terão contribuído com os pormenores mais deliciosos do folhetim contado pelos agentes em tribunal.

Mas, de há uns meses para cá, "tudo se tornou muito esquisito". A conversa - que as vizinhas terão jurado ouvir por acaso, que ouvidos de tísica elas têm - deixou de ser uma coisa melosa, os ruídos deixaram de ser só os de cama, e o prédio inteiro não sabe se era mais incómodo este barulho dos amantes, os ditos carnavais a desoras; se este que agora ouvem de objectos partidos, ofensas, palavrões, choro e cama a ranger de vez em quando.

Que Deus lhes parta uma perna se elas colaram o ouvido à porta, era perceptível no prédio inteiro que o Zé tinha enlouquecido de ciúmes. Gritava coisas como: "Eu não sou corno, sua porca", "tu é que te abres para os homens todos". "Sua puta, foi assim que a tua mãe te fez, uma rameira, sua vadia." E a mulher chorava, dizia que o Zé estava louco, que lhe era fiel, que só tinha olhos para ele, que era só dele. Mas o Zé não acreditava.

Terá sido essa desconfiança que o levou a espalhar berros pela casa. Frases, escritas com a letra dele mas na primeira pessoa, como se tivessem sido escritas por ela. Espalhadas por sítios estratégicos, como o frigorífico ou a prateleira dos cremes, para que a cada hora ela tivesse de conviver com o pecado que sempre negou.

Em tribunal, Zé tem pouco a acrescentar sobre este amor desordeiro.

"Peço desculpa aos senhores agentes, precipitei-me, mas a culpa foi dela, ela põe-me fora de mim."

"Agora a culpa é dela? Nem sabemos se não se esticou na briga mas como não é disso que é acusado..."

"Sôtora, o que está a insinuar? Nunca lhe bati. Posso dizer disparates e, pronto, perder a cabeça, mas isso não."

A juíza condena-o a 600 euros de multa pelas injúrias e a mais 600 pela resistência e coacção. Antes de sair, Zé declara em nome da sua honra:

"Mas eu amo muito a minha mulher, sôtora juíza, amo-a muito."

Silêncio na sala. Os poetas é que sabiam como o amor desarruma os sentimentos.
 
por Sílvia Caneco - Ionline 

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