Uma das razões pelas quais a minha fé no sucesso deste Governo está ao nível
da minha fé na ocorrência dos milagres de Fátima é porque eu não detecto,
nas palavras e nos actos dos actuais governantes, qualquer sinal de
pensamento estratégico sobre o que quer que seja. Auto-sequestrado na gestão
dia-a-dia do acordo com a troika, parece que não sobra a quem manda uma hora
que seja para pensar no resto que ainda sobra. Como se Portugal tivesse
deixado de existir.
O lado mais visível desta alienação governativa é a total ausência de uma
política europeia. O que pensa Passos Coelho da Europa? Nada que se conheça.
O que pensa Passos Coelho do nosso papel na Europa? Que temos de cumprir à
risca, e mais ainda, o memorando de entendimento. O que pensa Passos Coelho
da evidente e chocante descapitalização dos países do Sul, sob resgate ou
ameaça dele, em benefício dos países do Centro e Norte? Não pensa nada — em
voz alta, pelo menos. Será que já lhe ocorreu que quando uma Alemanha, uma
Finlândia, uma Holanda, os que nos tratam como "PIGS", financiam a sua
dívida pública a 1% de juros e nós, com a 'ajuda' deles, a 4,5%; que, quando
as empresas deles vão buscar dinheiro para investir a 3% de juros e as
nossas a 8 ou 9%, o fosso entre nós e eles só pode crescer e que essa
concorrência desleal representa a nossa condenação ao estatuto de país que
apenas trabalha para pagar juros de dívida? Nada que o preocupe: para não
irritar a srª. Merkel, ele é até um inimigo declarado das eurobonds. Será
que ele sabe que o dinheiro saído da Grécia, da Itália, Espanha ou Portugal,
e que se foi refugiar em francos suíços, foi aplicado pela banca suíça na
compra de dívida dos países ricos, assim fazendo baixar a sua taxa de juro —
ou seja, que é dinheiro dos PIGS que está a financiar a Alemanha e os outros
que nos tratam de cima da burra? Se sabe, não lhe interessa: é o tipo de
'questiúnculas' em que os seus conselheiros económicos não gostam que ele se
envolva. Aliás, Passos Coelho não fala com a Europa: fala com os
funcionários que a Europa e o FMI lhe mandam. É primeiro-ministro de um país
que tem 870 anos de existência na Europa e comporta-se como um emigrante a
bater à porta do clube.
Tomemos o caso emblemático da TAP, a que não me canso de regressar, mesmo
depois de o Presidente da República ter assinado de cruz o processo da sua
alienação. Será que Passos Coelho (ou Paulo Portas) já se detiveram a pensar
na importância estratégica da TAP para um pequeno país como Portugal e nas
consequências devastadoras que pode ter a sua venda a saldo a um novo-rico
colombiano com nome de mafioso russo? Seguramente que sabem que a TAP (na
qual os portugueses tanto investiram, como clientes e como contribuintes) é
uma empresa rentável, com uma posição invejável em África, crescente e
sustentada na Europa e absolutamente única no Atlântico Sul, e que o seu
único problema é não obter financiamento do Estado para liquidar o serviço
de dívida que arrasta consigo. Mas porque não pode a TAP receber dinheiros
públicos para se libertar dessa pistola apontada, se outras empresas
públicas privatizadas ou a privatizar, como a RTP, o BPN ou a CGD, o
receberam? Porque não pode a TAP receber dinheiros públicos, quando outras
empresas públicas do sector dos transportes, sem qualquer viabilidade e que
ninguém cobiça, como a CP, os metros do Porto e Lisboa, o recebem às mãos
cheias e continuamente? Porque não pode a TAP ser ajudada pelo Estado se
qualquer empresa privada, mesmo as gigantescas, das mercearias às cervejas,
são? Porque não pode a TAP, ao menos, ser aliviada da sua carga fiscal, se
qualquer empresa privada, desde que constituída em SGPS, consegue beneficiar
de todas as isenções graças a um desses cambalachos jurídicos que são a
especialidade de alguns escritórios de advocacia para os quais costumam
trabalhar os membros dos governos? Ou porque não há-de a TAP poder ser
sediada num qualquer paraíso fiscal, como fazem 19 das 20 empresas do nosso
PSI-20 e como certamente fará a mesma TAP depois de privatizada? Porque,
responderão eles, as leis da concorrência do sector na UE o não permitem. Ó,
meninos, vão brincar aos bons alunos para outro lado! Como é que a British
Airways ou a Ibéria,agora juntas, se safaram da falência? Isto é como a
história das golden shares, que este Governo correu a extinguir, sem sequer
esperar pelo veredicto do Tribunal Europeu. Se a legislação europeia as
proíbe, como é que a Alemanha, a França, a Itália, a Áustria e etc,
continuam a mantê-las? Para privatizar a TAP, eles só têm um argumento — e é
de força, não de razão: porque o professor Borges e o seu grupo de amigos
odeiam tudo o que seja público. Antes colombiano, chinês, angolano ou
paquistanês do que público e português.
Se assim não fosse, e se parassem para pensar, talvez lhes ocorresse antes
privatizar a TAP através de uma subscrição pública entre os portugueses. Eu
sei, é ridículo: isso resolveria o problema de a TAP deixar de ser uma
empresa pública, mas não resolveria o problema de continuar a ser
portuguesa. E suponho que tal contraria os ensinamentos da sebenta do
professor Borges — toda ela, como se constata pelos resultados à vista,
"extremamente inteligente".
Em matéria de economia, este Governo tem a preparação de um contabilista e a
sensibilidade de um merceeiro. Rapa, tira, deixa e não põe. Como não pensa o
país além do prazo e do programa da troika, acha que tudo o que seja cortar
(onde se atreve) é benéfico — mesmo quando cortar hoje cegamente é hipotecar
o futuro. Sem se deter a pensar, é assim que o Governo vai liquidando o que
de bom recebeu do governo anterior: a aposta na investigação e ciência e nas
energias alternativas (onde os ricos, como a Alemanha, apostam largo).
Confunde a megalomania dos TGV com todo o transporte ferroviário (em que
toda a Europa investe cada vez mais) — e assim, por exemplo, deixa asfixiar
o porto de Sines, que é, tal como a TAP, um dos raros clusters de retorno
garantido de que dispomos. Troca alimentos por eucaliptos e incêndios
garantidos, abrindo a Reserva Agrícola à indústria predadora das celuloses.
Troca o território e a paisagem pelo betão turístico, abrindo a Reserva
Ecológica à construção e ao mau investimento estrangeiro, numa aposta que já
se sabe ser de retorno imediato e de ruína subsequente. Troca o ensino do
português no estrangeiro pelo Acordo Ortográfico com o Brasil. Troca os
aeroportos, que são uma zona vital de soberania económica por meia dúzia de
feijões. Troca mesmo a estabilidade financeira futura por tudo o que permita
imediatamente disfarçar o fiasco anual das contas: foi assim em 2011, com a
absorção do fundo de pensões da banca pra disfarçar o défice e cujo os
encargos, em 2012, implicaram o primeiro défice da Segurança Social
registado nos últimos onze anos.
Gostaria de fazer a Passos Coelho a mesma pergunta que há muito tempo fiz a
outro primeiro-ministro, Cavaco Silva, o iniciador de todo este desastre:de que viverá Portugal daqui a dez anos, daqui a uma geração?
Miguel Sousa Tavares