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28.10.12

Diz Miguel Sousa Tavares: eles pensam?


Uma das razões pelas quais a minha fé no sucesso deste Governo está ao nível
da minha fé na ocorrência dos milagres de Fátima é porque eu não detecto,
nas palavras e nos actos dos actuais governantes, qualquer sinal de
pensamento estratégico sobre o que quer que seja. Auto-sequestrado na gestão
dia-a-dia do acordo com a troika, parece que não sobra a quem manda uma hora
que seja para pensar no resto que ainda sobra. Como se Portugal tivesse
deixado de existir.

O lado mais visível desta alienação governativa é a total ausência de uma
política europeia. O que pensa Passos Coelho da Europa? Nada que se conheça.
O que pensa Passos Coelho do nosso papel na Europa? Que temos de cumprir à
risca, e mais ainda, o memorando de entendimento. O que pensa Passos Coelho
da evidente e chocante descapitalização dos países do Sul, sob resgate ou
ameaça dele, em benefício dos países do Centro e Norte? Não pensa nada — em
voz alta, pelo menos. Será que já lhe ocorreu que quando uma Alemanha, uma
Finlândia, uma Holanda, os que nos tratam como "PIGS", financiam a sua
dívida pública a 1% de juros e nós, com a 'ajuda' deles, a 4,5%; que, quando
as empresas deles vão buscar dinheiro para investir a 3% de juros e as
nossas a 8 ou 9%, o fosso entre nós e eles só pode crescer e que essa
concorrência desleal representa a nossa condenação ao estatuto de país que
apenas trabalha para pagar juros de dívida? Nada que o preocupe: para não
irritar a srª. Merkel, ele é até um inimigo declarado das eurobonds. Será
que ele sabe que o dinheiro saído da Grécia, da Itália, Espanha ou Portugal,
e que se foi refugiar em francos suíços, foi aplicado pela banca suíça na
compra de dívida dos países ricos, assim fazendo baixar a sua taxa de juro —
ou seja, que é dinheiro dos PIGS que está a financiar a Alemanha e os outros
que nos tratam de cima da burra? Se sabe, não lhe interessa: é o tipo de
'questiúnculas' em que os seus conselheiros económicos não gostam que ele se
envolva. Aliás, Passos Coelho não fala com a Europa: fala com os
funcionários que a Europa e o FMI lhe mandam. É primeiro-ministro de um país
que tem 870 anos de existência na Europa e comporta-se como um emigrante a
bater à porta do clube.

Tomemos o caso emblemático da TAP, a que não me canso de regressar, mesmo
depois de o Presidente da República ter assinado de cruz o processo da sua
alienação. Será que Passos Coelho (ou Paulo Portas) já se detiveram a pensar
na importância estratégica da TAP para um pequeno país como Portugal e nas
consequências devastadoras que pode ter a sua venda a saldo a um novo-rico
colombiano com nome de mafioso russo? Seguramente que sabem que a TAP (na
qual os portugueses tanto investiram, como clientes e como contribuintes) é
uma empresa rentável, com uma posição invejável em África, crescente e
sustentada na Europa e absolutamente única no Atlântico Sul, e que o seu
único problema é não obter financiamento do Estado para liquidar o serviço
de dívida que arrasta consigo. Mas porque não pode a TAP receber dinheiros
públicos para se libertar dessa pistola apontada, se outras empresas
públicas privatizadas ou a privatizar, como a RTP, o BPN ou a CGD, o
receberam? Porque não pode a TAP receber dinheiros públicos, quando outras
empresas públicas do sector dos transportes, sem qualquer viabilidade e que
ninguém cobiça, como a CP, os metros do Porto e Lisboa, o recebem às mãos
cheias e continuamente? Porque não pode a TAP ser ajudada pelo Estado se
qualquer empresa privada, mesmo as gigantescas, das mercearias às cervejas,
são? Porque não pode a TAP, ao menos, ser aliviada da sua carga fiscal, se
qualquer empresa privada, desde que constituída em SGPS, consegue beneficiar
de todas as isenções graças a um desses cambalachos jurídicos que são a
especialidade de alguns escritórios de advocacia para os quais costumam
trabalhar os membros dos governos? Ou porque não há-de a TAP poder ser
sediada num qualquer paraíso fiscal, como fazem 19 das 20 empresas do nosso
PSI-20 e como certamente fará a mesma TAP depois de privatizada? Porque,
responderão eles, as leis da concorrência do sector na UE o não permitem. Ó,
meninos, vão brincar aos bons alunos para outro lado! Como é que a British
Airways ou a Ibéria,agora juntas, se safaram da falência? Isto é como a
história das golden shares, que este Governo correu a extinguir, sem sequer
esperar pelo veredicto do Tribunal Europeu. Se a legislação europeia as
proíbe, como é que a Alemanha, a França, a Itália, a Áustria e etc,
continuam a mantê-las? Para privatizar a TAP, eles só têm um argumento — e é
de força, não de razão: porque o professor Borges e o seu grupo de amigos
odeiam tudo o que seja público. Antes colombiano, chinês, angolano ou
paquistanês do que público e português.

Se assim não fosse, e se parassem para pensar, talvez lhes ocorresse antes
privatizar a TAP através de uma subscrição pública entre os portugueses. Eu
sei, é ridículo: isso resolveria o problema de a TAP deixar de ser uma
empresa pública, mas não resolveria o problema de continuar a ser
portuguesa. E suponho que tal contraria os ensinamentos da sebenta do
professor Borges — toda ela, como se constata pelos resultados à vista,
"extremamente inteligente".

Em matéria de economia, este Governo tem a preparação de um contabilista e a
sensibilidade de um merceeiro. Rapa, tira, deixa e não põe. Como não pensa o
país além do prazo e do programa da troika, acha que tudo o que seja cortar
(onde se atreve) é benéfico — mesmo quando cortar hoje cegamente é hipotecar
o futuro. Sem se deter a pensar, é assim que o Governo vai liquidando o que
de bom recebeu do governo anterior: a aposta na investigação e ciência e nas
energias alternativas (onde os ricos, como a Alemanha, apostam largo).
Confunde a megalomania dos TGV com todo o transporte ferroviário (em que
toda a Europa investe cada vez mais) — e assim, por exemplo, deixa asfixiar
o porto de Sines, que é, tal como a TAP, um dos raros clusters de retorno
garantido de que dispomos. Troca alimentos por eucaliptos e incêndios
garantidos, abrindo a Reserva Agrícola à indústria predadora das celuloses.
Troca o território e a paisagem pelo betão turístico, abrindo a Reserva
Ecológica à construção e ao mau investimento estrangeiro, numa aposta que já
se sabe ser de retorno imediato e de ruína subsequente. Troca o ensino do
português no estrangeiro pelo Acordo Ortográfico com o Brasil. Troca os
aeroportos, que são uma zona vital de soberania económica por meia dúzia de
feijões. Troca mesmo a estabilidade financeira futura por tudo o que permita
imediatamente disfarçar o fiasco anual das contas: foi assim em 2011, com a
absorção do fundo de pensões da banca pra disfarçar o défice e cujo os
encargos, em 2012, implicaram o primeiro défice da Segurança Social
registado nos últimos onze anos.

Gostaria de fazer a Passos Coelho a mesma pergunta que há muito tempo fiz a
outro primeiro-ministro, Cavaco Silva, o iniciador de todo este desastre:de que viverá Portugal daqui a dez anos, daqui a uma geração?
Miguel Sousa Tavares

21.9.12

Diz Miguel Sousa Tavares: Há alguns incompetentes, mas poucos inocentes

O que poderemos nós pensar quando, depois de tantos anos a exigir o fim das SCUT, descobrimos que, afinal, o fim das auto-estradas sem portagens ainda iria conseguir sair mais caro ao Estado?
Como caixa de ressonância daqueles que de quem é porta-voz (tendo há muito deixado de ter voz própria), o presidente da Comissão Europeia, o português Durão Barroso, veio alinhar-se com os conselhos da troika sobre Portugal: não há outro caminho que não o de seguir a “solução” da austeridade e acelerar as “reformas estruturais” — descer os custos salariais, liberalizar mais ainda os despedimentos e diminuir o alcance do subsídio de desemprego. Que o trio formado pelo careca, o etíope e o alemão ignorem que em Portugal se está a oferecer 650 euros de ordenado a um engenheiro electrotécnico falando três línguas estrangeiras ou 580 euros a um dentista em horário completo é mais ou menos compreensível para quem os portugueses são uma abstracção matemática. Mas que um português, colocado nos altos círculos europeus e instalado nos seus hábitos, também ache que um dos nossos problemas principais são os ordenados elevados, já não é admissível. Lembremo-nos disto quando ele por aí vier candidatar-se a Presidente da República.

Durão Barroso é uma espécie de cata-vento da impotência e incompetência dos dirigentes europeus. Todas as semanas ele cheira o vento e vira-se para o lado de onde ele sopra: se os srs. Monti, Draghi, Van Rompuy se mostram vagamente preocupados com o crescimento e o emprego, lá, no alto do edifício europeu, o cata-vento aponta a direcção; se, porém, na semana seguinte, os mesmos senhores mais a srª Merkel repetem que não há vida sem austeridade, recessão e desemprego, o cata-vento vira 180 graus e passa a indicar a direcção oposta. Quando um dia se fizer a triste história destes anos de suicídio europeu, haveremos de perguntar como é que a Europa foi governada e destruída por um clube fechado de irresponsáveis, sem uma direcção, uma ideia, um projecto lógico. Como é que se começou por brincar ao directório castigador para com a Grécia para acabar a fazer implodir tudo em volta. Como é que se conseguiu levar a Lei de Murphy até ao absoluto, fazendo com que tudo o que podia correr mal tivesse corrido mal: o contágio do subprime americano na banca europeia, que era afirmadamente inviável e que estoirou com a Islândia e a Irlanda e colocou a Inglaterra de joelhos; a falência final da Grécia, submetida a um castigo tão exemplar e tão inteligente que só lhe restou a alternativa de negociar com as máfias russas e as Three Gorges chinesas; como é que a tão longamente prevista explosão da bolha imobiliária espanhola acabou por rebentar na cara dos que juravam que a Espanha aguentaria isso e muito mais; como é que as agências de notação, os mercados e a Goldman Sachs puderam livremente atacar a dívida soberana de todos os Estados europeus, excepto a Alemanha, numa estratégia concertada de cerco ao euro, que finalmente tornou toda a Europa insolvente. Ou como é que um pequeno país, como Portugal, experimentou uma receita jamais vista — a de tentar salvar as finanças públicas através da ruína da economia — e que, oh, espanto, produziu o resultado mais provável: arruinou uma coisa e outra. E como é que, no final de tudo isto, as periferias implodiram e só o centro — isto é, a Alemanha e seus satélites — se viu coberto de mercadorias que os seus parceiros europeus não tinham como comprar e atulhado em triliões de euros depositados pelos pobres e desesperados e que lhes puderam servir para comprar tudo, desde as ilhas gregas à água que os portugueses bebiam.

Deixemos os grandes senhores da Europa entregues à sua irrecuperável estupidez e detenhamo-nos sobre o nosso pequeno e infeliz exemplo, que nos serve para perceber que nada aconteceu por acaso, mas sim porque umas vezes a incompetência foi demasiada e outras a inocência foi de menos.

O que podemos nós pensar quando o ex-ministro Teixeira dos Santos ainda consegue jurar que havia um risco sistémico de contágio se não se nacionalizasse aquele covil de bandidos do BPN? Será que todo o restante sistema bancário também assentava na fraude, na evasão fiscal, nos negócios inconfessáveis para amigos, nos bancos-fantasmas em Cabo Verde para esconder dinheiro e toda a restante série de traficâncias que de há muito — de há muito! — se sabia existirem no BPN? E como, com que fundamento, com que ciência, pode continuar a sustentar que a alternativa de encerrar, pura e simplesmente, aquele vão de escada “faria recuar a economia 4%”? Ou que era previsível que a conta da nacionalização para os contribuintes não fosse além dos 700 milhões de euros?

O que poderemos nós pensar quando descobrimos que à despesa declarada e à dívida ocultada pelo dr. Jardim ainda há a somar as facturas escondidas debaixo do tapete, emitidas pelos empreiteiros amigos da “autonomia” e a quem ele prometia conseguir pagar, assim que os ventos de Lisboa lhe soprassem mais favoravelmente?

O que poderemos nós pensar quando, depois de tantos anos a exigir o fim das SCUT, descobrimos que, afinal, o fim das auto-estradas sem portagens ainda iria conseguir sair mais caro ao Estado? Como poderíamos adivinhar que havia uns contratos secretos, escondidos do Tribunal de Contas, em que o Estado garantia aos concessionários das PPP que ganhariam sempre X sem portagens e X+Y com portagens? Mas como poderíamos adivinhá-lo se nos dizem sempre que o Estado tem de recorrer aos serviços de escritórios privados de advocacia (sempre os mesmos), porque, entre os milhares de juristas dos quadros públicos, não há uma meia dúzia que consiga redigir um contrato em que o Estado não seja sempre comido por parvo?

A troika quer reformas estruturais? Ora, imponha ao Governo que faça uma lei retroactiva — sim, retroactiva — que declare a nulidade e renegociação de todos os contratos celebrados pelo Estado com privados em que seja manifesto e reconhecido pelo Tribunal de Contas que só o Estado assumiu riscos, encaixou prejuízos sem correspondência com o negócio e fez figura de anjinho. A Constituição não deixa? Ok, estabeleça-se um imposto extraordinário de 99,9% sobre os lucros excessivos dos contratos de PPP ou outros celebrados com o Estado. Eu conheço vários.

Quer outra reforma, não sei se estrutural ou conjuntural, mas, pelo menos, moral? Obrigue os bancos a aplicarem todo o dinheiro que vão buscar ao BCE a 1% de juros no financiamento da economia e das empresas viáveis e não em autocapitalização, para taparem os buracos dos negócios de favor e de influência que andaram a financiar aos grupos amigos.

Mais uma? Escrevam uma lei que estabeleça que todas as empresas de construção civil, que estão paradas por falta de obras e a despedir às dezenas de milhares, se possam dedicar à recuperação e remodelação do património urbano, público ou privado, pagando 0% de IRC nessas obras. Bruxelas não deixa? Deixa a Holanda ter um IRC que atrai para lá a sede das nossas empresas do PSI-20, mas não nos deixa baixar parte dos impostos às nossas empresas, numa situação de emergência? OK, Bruxelas que mande então fechar as empresas e despedir os trabalhadores. Cumpra-se a lei!

Outra? Proíbam as privatizações feitas segundo o modelo em moda, que consiste em privatizar a parte das empresas que dá lucro e deixar as “imparidades” a cargo do Estado: quem quiser comprar leva tudo ou não leva nada. E, já agora, que a operação financeira seja obrigatoriamente conduzida pela Caixa Geral de Depósitos (não é para isso que temos um banco público, por enquanto?). O quê, a Caixa não tem vocação ou aptidão para isso? Não me digam! Então, os administradores são pagos como privados, fazem negócios com os grandes grupos privados, até compram acções dos bancos privados e não são capazes de fazer o que os privados fazem? E, quanto à engenharia jurídica, atenta a reiterada falta de vocação e de aptidão dos serviços contratados em outsourcing para defenderem os interesses do cliente Estado, a troika que nos mande uma equipa de juristas para ensinar como se faz.

Tenho muitas mais ideias, algumas tão ingénuas como estas, mas nenhumas tão prejudiciais como aquelas com que nos têm governado. A próxima vez que o careca, o etíope e o alemão cá vierem, estou disponível para tomar um cafezinho com eles no Ritz. Pago eu, porque não tenho dinheiro para os juros que eles cobram se lhes ficar a dever.
MIGUEL SOUSA TAVARES