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5.6.14

Pobre e mal-agradecido, mas com uma lata incomensurável


Este Governo, claro. Durante os primeiros cinco meses do ano, o Governo, que é pobre, cobrou um imposto especial e extraordinário incidindo exclusivamente sobre as grandes fortunas, portanto, sobre os trabalhadores da função pública que recebem mais de 675 euros por mês. Como se esperava, e seguindo jurisprudência firmada, o Tribunal Constitucional (TC) declarou este imposto inconstitucional e determinou a cessação da sua cobrança. Lamentavelmente, permitiu que o Governo retivesse os montantes entretanto ilegitimamente cobrados.
Acabou por ser um benefício ao infractor, tão mais perigoso quanto estimula o Governo, sabendo que conta com a prestimosa cooperação institucional do Presidente da República, a repetir a habilidade no próximo ano. As razões para tal benesse são difíceis de explicar em texto curto, mas têm a ver com protecção da confiança (neste caso do Governo) na cobrança do imposto extraordinário que o TC admitiu que pudesse vigorar durante o chamado programa de ajustamento e também com a dificuldade técnica em definir o limite preciso a partir do qual um acréscimo àquele imposto é considerado inconstitucional.
Porém, este Governo, que é pobre, é também mal agradecido e, por isso, não lhe ocorreu melhor que pretender suscitar um inadmissível incidente de aclaração exactamente sobre o benefício que o TC lhe concedera. Não percebem com exactidão, dizem, as consequências jurídicas da decisão do TC. Mas o que o TC disse, de forma clara e inequívoca, foi: a partir de 30 de Maio o Governo deixa de poder cobrar este imposto. Ora, recorrendo à linguagem tão cara aos fanáticos de mais e mais impostos (mas só sobre alguns): qual é a parte do a partir de 30 de Maio que não percebem? Não sabem qual é o exacto montante cobrado ilegitimamente que podem reter? Bom, mas aí, se não sabem, estudassem. O que é que o TC tem a ver com isso?
Na realidade, o pedido de aclaração não faz qualquer sentido nem teria, mesmo se fosse bem sucedido, a mínima consequência prática. Da parte do Governo, no fim de contas, é business as usual. Tudo isto acontece apenas porque está a celebrar-se a já ritual semana de luta que se segue a qualquer decisão de inconstitucionalidade, desta vez apenas amplificada pelo facto de, no calendário deste ano, esta semana coincidir com a campanha, também já inaugurada, de pressão sobre a próxima decisão do Tribunal Constitucional.
Este Governo não respeita o TC. Cumpre as suas decisões, pudera, porque é obrigado. Mas ignora e atropela, sistematicamente, todas as indicações do TC. Em 2011, o TC disse que só excepcionalmente admitia o referido imposto especial e extraordinário sobre funcionários e pensionistas, mas, logo em 2012, o Governo tentou fazer acrescer-lhe outro imposto equivalente a dois salários (conseguiu-o, na prática, mas o TC reafirmou a inconstitucionalidade, advertindo que não havia lugar para mais impostos só sobre alguns). Porém, chega o Orçamento de 2013 e, com ele, outra tentativa de novo imposto, desta vez equivalente a um salário, e mais uma esperada decisão de inconstitucionalidade. Será que o Governo se conformou finalmente à legalidade? Qual quê! Logo em 2014, novo e ainda mais grave imposto, precisamente este que foi agora considerado inconstitucional. E é, então, este mesmo Governo que agora quer conhecer exactamente o montante que pode reter para, diz, não incorrer em eventual ilegalidade. Digam-nos, por favor, o que a lei impõe. Correr o risco de cometer uma ilegalidade, credo… É bonito, é mesmo comovente, há que reconhecer.
Pode ser pobre e mal-agradecido, mas, o seu a seu dono, tem uma lata incomensurável.
Jorge Reis Novais  - Professor universitário e constitucionalista