"Já alguém perguntou aos mais de 900 mil desempregados do que
lhes valeu a Constituição?" A frase do primeiro-ministro é todo um programa.
Antes de tudo, é uma declaração de guerra ao Estado de Direito. O que vem depois
disto? Que a democracia não põe comida no prato? Que as eleições não fazem
crescer a economia? Que a liberdade de expressão não aumenta as exportações?
Esta frase é, ainda por cima, de um tremendo cinismo. O homem
que, como primeiro-ministro, mais postos de trabalho ajudou a destruir em
Portugal tem a suprema lata de usar o sofrimento dos desempregados para atacar o
Tribunal Constitucional e a Constituição. Não, a Constituição não nos protege de
primeiros-ministros incompetentes. Apenas impede que governem como se vigorasse,
por sua própria decisão e à margem da lei, o estado de emergência. Ela defende
valores que as democracias têm como fundamentais. Entre eles, a proteção da
confiança que, por unanimidade, os juízes consideravam que era afetada pela
proposta do governo para a "requalificação" dos funcionários públicos. Na
realidade, o acórdão até abre a porta a despedimentos na função pública. Apenas
impede que eles aconteçam por este meio.
Para Passos Coelho o problema da decisão do Tribunal
Constitucional não está propriamente na Constituição, mas na interpretação que o
TC faz da mesma. Segunda lição ao primeiro-ministro sobre o Estado de Direito:
se as leis não precisassem de ser interpretadas quando são submetidas a
realidades concretas os tribunais não eram necessários. Se a Constituição não
tivesse de ser interpretada quando se avalia a constitucionalidade de uma lei o
Tribunal Constitucional seria uma inutilidade. Claro que o TC faz uma
interpretação da Constituição. Tendo em conta que essa interpretação foi
unânime, mandaria a humildade acatá-la sem grandes comentários e no respeito
pelas instituições e pelas suas funções.
Por fim, Passos Coelho diz que parte para a conversa com a
troika com dificuldades. Por não poder dizer se "não haverá problemas"
com as medidas que venha a apresentar. Ou seja, será difícil explicar à
troika que Portugal, sendo uma democracia, tem leis que limitam a ação do
governo e tribunais que as aplicam. Recordo o que disse recentemente a ensaísta
alemã Gertrud Höhler, quando deu como bom exemplo de instrumentos de resistência
à cegueira europeia o veto do Tribunal Constitucional português às medidas
propostas no Orçamento de 2012. Considerou-o um sinal para as opiniões públicas
europeias de que, como comunidade, ainda existimos. Como se fosse dito, explicou
a ex-conselheira de Helmut Kohl, "lamentamos, mas temos aqui um obstáculo que
não podemos ultrapassar".
Se Passos Coelho não considerasse, como considera, que o programa
da troika é o seu programa, veria mais este veto como um instrumento
negocial valioso. Pelo contrário, está a trata-lo como um pretexto para mais
ataques aos reformados, para um segundo resgate (com este ou outro nome) há
muito anunciado e para esconder as suas próprias responsabilidades. Lá diz o
povo que quando o macaco não sabe dançar a culpa é do chão.
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