28.1.14

Tem a palavra Daniel Oliveira - Socialistas e extrêma-direita em França

Quando escrevemos um texto sobre o passado procuramos muitas vezes um momento que ajude a enquadrar o contexto em que as tragédias se dão. Um momento que consiga captar, num dia banal ou num acontecimento aparentemente sem importância, o contexto político em que se deram as mudanças radicais. Um começo narrativo, mesmo que insignificante, que ajude a contar a história que se seguiu. Arrisco uma proposta para o começo de um texto futuro que quisesse explicar a decadência da social-democracia e, se nada fizermos, da União Europeia. Escolhi a França. Escolhi as vésperas das eleições Europeias. Escolhi o dia de ontem e de anteontem:
"27 de janeiro de 2014. Na primeira visita, em 22 anos, de um chefe de Estado francês à Turquia, François Hollande anunciava que a França iria fazer um referendo a uma possível entrada turca na União Europeia. Todos percebiam que, para a França, para a União Europeia e para a Turquia esta promessa vinha tarde demais. O tempo, o preconceito e a crise já tinham minado todo o caminho.
Longe iam os tempos de popularidade do governo de Ancara e do caminho turco para a modernidade e para a Europa. O veto francês e alemão deixara a Turquia num eterno purgatório. O acossado primeiro-ministro Erdogan, arquiteto do "milagre económico" turco, estava submerso num escândalo de corrupção que levara, naquela mesma semana, à queda de três ministros. Ao lado do seu homólogo, Abdullah Gul, Hollande acabaria por referir vários temas muito sensíveis da vida interna turca, como a "separação de poderes", a "independência da justiça" e o "genocídio arménio". E concluíra, condescendente perante o gigante: "o processo (de adesão à UE) poderia assim permitir à Turquia mostrar do que é capaz".
Mas a comunicação social francesa parecia mais entusiasmada com outros temas: em plena separação matrimonial de Hollande, o presidente francês fazia a primeira visita "celibatária". Não se tratava apenas de frivolidade. É que também iam longe os tempos em que a União Europeia se inchava de autoconfiança e a maioria acreditava que se alargaria do Atlântico aos Urais. Já ninguém acreditava na adesão da Turquia. Quando muito, quase todos se espantavam por alguém querer entrar numa União em crise profunda. E, acima de tudo, apesar de não irem tão longe, os tempos em que alguém tinha alguma esperança na relevância das opiniões do senhor Hollande na Europa já estavam definitivamente ultrapassados.
Na véspera, dezenas de milhares de manifestantes de pequenas organizações de extrema-direita e populistas exigiram, nas ruas de Paris, a demissão de Hollande, numa jornada a que chamaram "dia de cólera". E uma nova sondagem anunciava a vitória, nas eleições europeias que se aproximavam, da Frente Nacional. Quanto ao PSF, de Hollande, previa-se que ficasse pelos 18%. Uma semana antes, Hollande oferecera mais uma excelente oportunidade de crescimento à senhora Le Pen, líder da Frente Nacional: mergulhado em escândalos pessoais, o presidente que chegara ao poder com a promessa de pôr os ricos a pagar a crise anunciara, perante o país, a sua "viragem liberal" e o abandono definitivo da agenda social socialista.
Ao ir à Turquia, Hollande deu um passo para resolver as crises bilaterais deixadas pelo seu antecessor Sarkozy. Até a promessa do primeiro e bizarro referendo em França sobre a entrada dum novo Estado na União Europeia era uma herança desse tempo. Mas a verdade é que a abordagem de temas internos tão sensíveis está longe de ser a habitual em visitas diplomáticas. Hollande estava, na verdade, a falar para um eleitorado francês cada vez mais capturado pela extrema-direita.
Pairava sobre Hollande a sombra de Marine Le Pen. E não seriam as cedências à agenda xenófoba da líder da FN que a conseguiram travar. Como não a tinham conseguido travar as investidas do ministro do Interior socialista, cavalgando a agenda da segurança e do medo da extrema-direita. Nem a desastrada gestão duma mediática expulsão duma jovem cigana menor para um país de que não falava sequer a língua, com garantia posterior de poder regressar a casa sozinha. Sempre que os socialistas decidiam entrar em terreno de Le Pen acabavam por tropeçar e sair-se mal. Limitavam-se a dar-lhe ainda mais força e legitimidade.
Na verdade, a FN já não estava a ganhar espaço no terreno da segurança e da imigração. Essa fora a estratégia Jean-Marie Le Pen. Foi quando a Le Pen filha abandonou o discurso economicamente liberal do pai e se apoderou da agenda social da esquerda que as coisas realmente mudaram e a extrema-direta francesa deu o salto político pelo qual há tanto tempo esperava.
Perante isto, o que fez Hollande? Apoderou-se ele, de forma clara e final, da impopular e agressiva agenda ultraliberal duma direita europeia que abandonara, pelo menos há duas décadas, a sua matriz democrata-cristã. E foi jogar no campo de Le Pen a agenda da xenofobia e da segurança. Com os socialistas em corte com o seu eleitorado tradicional e com a sua agenda mais radical legitimada pelo centro, a Frente Nacional estava finalmente em condições de entrar sem dificuldades no que sobrava do eleitorado socialista.
Nas eleições europeias de maio de 2014 as piores previsões acabaram por se confirmar. E não apenas em França. A direita autoriária, grupos populistas de várias cores e agluns eurocéticos democratas ou nem por isso tiveram uma vitória assinalável. O centro-esquerda foi, em muitos países, a principal vítima do voto de protesto. Mesmo onde estava na oposição, foi incapaz de capitalizar o descontentamento. E este foi apenas o primeiro aviso do terramoto que ainda estava para vir."
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http://expresso.sapo.pt/antes-pelo-contrario=s25282#ixzz2riiEFOcQ

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