O governo anuncia todos os dias (com alguma bonomia educada e cortês, há que reconhecê-lo) mais uns cortes. Uns cortes nisto, uns cortes naquilo, no subsídio de Natal, nas achegas pindéricas do sistema de saúde, no subsídio de desemprego, nos parqueamentos, nos transportes, na electricidade e no gás, na água e no sabão azul e branco, no subsídio da dentadura, no subsídio da dioptria, talvez até mesmo no subsídio da morte súbita, um dia destes quem sabe, na morte súbita de quem, sem qualquer aviso prévio ou comunicação atempada, prudente e oficiosa, o tenha registado, comunicado ou anunciado, com total lhaheza e imbuído de um verdadeiro sentido cívico. Com as maçadas e as custas que isso possa acarretar para o erário público. Veja-se. Depreenda-se.
Mas os portugueses, este bom povo, de tão bons e de tão brandos costumes, de uma aceitação segura e meritória sempre que lhe metem ou vão metendo, com alguma suavidade, ternura e delicadeza, o dedo pelo cu acima, este bom povo à casa, não se precipita, não se exaltera nem se desmancha. Insiste e espera, atento e venerando, pelo início, pela rentrée do campeonato de futebol, agora que a volta ao portugal parece ter acabado, enquanto regista, lépido e encantado, os nomes estrangeiros dos novos jogadores do seu genuíno e português clube e vai contando mentalmente os dias que faltam para o natal, as prendas, o menino jesus e mais tarde a peregrinação a fátima - a pé, de joelhos, side-car ou opel corsa de 2001, consoante as possibilidades, os critérios e a dilatação possível de uma fé inquebrantável e transversal às possibilidades de cada um. No zintervalos e enquanto a esposa (a esposa do povo, claro) lava a louça, sempre vai vendo a grande noite do fado, que é óptima, pois ela é quase noite sim noite não, podendo a esposa, já depois da louça seca e arrumada, naturalmente, ver ainda em diferido as amálias de cartão e os faias de meia idade, de fado cinzento completo.
É um prazer para todos. Para o descritível povo atrás descrito e também para os senhores ministros, secretários de estado, directores gerais, técnicos de nomeada, assessores políticos, banqueiros, investidores, accionistas, motoristas e contínuos, politólogos e opinadores, jornais de enorme expansão, circulação e cilindrada, bem como para os vendedores de castanha assada e arrumadores de automóveis.
Bem nos dizia o professor de História do Liceu Camões, o saudoso Pereira Miguel (em coro com os diversos e sucessivos professores de Religião e Moral e ainda com o de Organização Política e Administrativa da Nação) que não há, que não havia, que nunca houve classes, que isso era tudo uma invenção malvada dos comunistas, perpetrada no intervalo dos seus pequenos almoços de flocos de aveia e sandwiches de crianças com manteiga.
Carlos Reis
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